[GTER] RES: Sobre solicitação de informações de clientes de ISP por autoridades

Felipe Drummond felipedrummond at gmail.com
Thu Oct 21 03:08:25 -03 2021


Prezados,

sou da área jurídica, atualmente Defensor Público, mas como uma espécie de
hobbista do setor de telecom, gosto de ler esse grupo.

Permitam-me algumas considerações.

*RESERVA DE JURISDIÇÃO* é o nome que se dá aos poderes exclusivos do juiz.
Decretação de prisão (ex: prisão preventiva) é um deles (outras pessoas só
podem prender em flagrante delito).
Interceptação telefônica ("grampo") é outro deles.

O Marco Civil da internet é claríssimo ao conferir plena, clara e
cristalina reserva de jurisdição à quebra do sigilo dos registros das
comunicações (os chamados "registros de conexão e acesso a aplicações",
como consta do art. 15 § 3º. O procedimento judicial vem no art. 22 da
mesma lei.

O que autoridades policiais e o Ministério Público podem fazer é
mandar um "*segura
esses dados aí que eu já vou fazer o pedido ao juiz*", conforme autoriza o
art. 15 § 2º, onde se lê que "a autoridade policial ou administrativa ou o
Ministério Público poderá requerer cautelarmente que os registros de
conexão sejam guardados por prazo superior ao previsto no caput". No caso,
o prazo de guarda previsto no *caput *(= primeira parte de um artigo de lei)
 é de um ano. A ideia é que essas autoridades possam primeiro ordenar a
guarda prolongada, para ganharem tempo (60 dias no caso) de correrem ao
juiz para fazerem o pedido de acesso aos dados de registros de conexão e
acesso a aplicações.

O particular precisa fazer esse pedido ao juiz diretamente e com pressa,
não tendo essa 'carta na manga' de pedir ao provedor que segure um
pouquinho mais os dados, pois já vai entrar com a ação.

*DADOS CADASTRAIS (nome, filiação, nascimento, endereço, telefone  CPF,
etc)*
Não se aplica LGPD quando a situação envolve apuração de infrações penais.
Aplica-se o Marco Civil, que diz no art. 10  § 3º que a superproteção
conferida aos dados reveladores de privacidade, intimidade, etc não se
aplica a dados cadastrais. Vejam: "3º O disposto no caput não impede o
acesso aos dados cadastrais que informem qualificação pessoal, filiação e
endereço, na forma da lei, pelas autoridades administrativas que detenham
competência legal para a sua requisição."

A questão é saber quais são essas autoridades não judiciais, o que a lei
não disse especificamente.

Há leis como a Lei de Organizações Criminosas e a Lei de Lavagem de
Dinheiro que explicitamente prevêem a possibilidade de requisição pelo MP
ou pela autoridade policial, sem interferência judicial. A questão é saber
se isso se aplica a toda forma de apuração de ilícito penal ou só aos
crimes tipificados nessas leis especiais. Os arts. 13-A e 13-B do Código de
Processo Penal também colocam outros crimes como sujeitos a medidas de
igual teor, como a disponibilização de informações sobre ERBs para crimes
de sequestro, cárcere privado, tráfico de pessoas, etc, sem precisar de
ordem judicial.

Há uma questão interpretativa: saber se a lei silenciou eloquentemente
quando deixou de dizer que essa inexistência de reserva de jurisdição é
apenas para esses crimes ou se é para qualquer apuração criminal.

*Então, de forma bem simples:*

*quanto aos registros de conexão e acesso a aplicações*
- ordem de promotor e delegado só serve para o provedor *evitar que os
dados se percam*, ficando a autoridade policial ou o membro do MP aprazados
em 60 dias para requererem ao juiz a ordem judicial que permitirá obter
registros de conexão ou acesso a aplicações
- *apenas *o juiz pode ordenar a exibição dos registros de conexão ou
acesso a aplicações, conforme procedimento da Seção IV do Marco Civil da
Internet.

*quanto aos dados cadastrais dos assinantes do provedor*
- é *certo *que MP e autoridade policial podem requisitar *sem *ordem
judicial nos casos em que a atribuição persecutória envolver os crimes em
que as leis processuais aplicáveis prevêem a obtenção dessas informações
sem atuação judicial (por exemplo: persecução de crimes em quehá
organização criminosa L12850: § 1º Considera-se organização criminosa a
associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e
caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com
objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza,
mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores
a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.)
- é *incerto *o que fazer no tocante à apuração de ilícitos não
contemplados por essas leis que tem essa previsão de requisição direta pelo
MP ou autoridade policial, por esse motivo não sendo ordem
*manifestamente *ilegal
do promotor ou delegado de polícia requisitar esses dados cadastrais
diretamente, eis que há dissenso jurídico razoável a respeito (e aqui
friso, sendo *DIFERENTE *do que se entende sobre o acesso a dados de
registro de conexão e acesso a aplicações, onde é clara a reserva de
jurisdição)
- vejo como indispensável assessoria jurídica para respaldar as condutas e
até atacar as requisições reputadas ilegais por parte das autoridades, como
impetração de mandado de segurança e até habeas corpus (preventivo ou
repressivo), se a advertência sobre o crime de obediência passar de uma
mera advertência. E também para decidir o caso a caso, sensivelmente.


Apesar de não atuar na seara criminal, é claro que como Defensor Público
(no crime) vivemos a caçar provas ilícitas para forçar que o
estado-acusador não se desincumba dos deveres de respeitar a lei. Na área
cível, contudo, normalmente estamos ao lado dos lesados, não dos
fraudadores/golpistas/etc, que se evadem rapidinho e jamais encontramos.

Há uma responsabilidade social óbvia por parte dos provedores, mas a
questão não é completamente clara e nem aponta inequivocamente sobre o que
fazer nos casos limítrofes. Espero, contudo, ter aclarado uma parte do tema.

Abraços,



Em qua., 20 de out. de 2021 às 23:44, Rubens Kuhl <rubensk at gmail.com>
escreveu:

> On Wed, Oct 20, 2021 at 11:27 PM Alexandre Aleixo | Opticalhost
> <alexandre at opticalhost.com.br> wrote:
> >
> > Oi Fernando,
> >
> > >>Acredito que existe uma divergência razoável em várias pessoas (com o
> > >>input das respectivas Assessorias Jurídicas) com relação se o Delegado
> > >>possui ou não a prerrogativa de exigir e receber esses dados sem a
> > >>necessidade de uma autorização judicial,
> >
> > Repito: a autorização do Juiz é necessária à autoridade policial que
> fará a
> > diligência, devendo ser juntada no inquérito. Não é necessária a
> > apresentação da autorização ao particular.
> >
> > >>inclusive com as implicações
> > >>disso tanto contra a empresa que fornece e também que pode ser
> utilizado
> > >>à depender da astúcia da defesa do investigado para invalidar aquelas
> > >>provar obtidas ilegalmente.
> >
> > Cabe à própria autoridade policial zelar pela legalidade do procedimento
> > que está realizando, bem como da sua própria instituição e demais
> > instituições do Estado em realizar o controle da atividade policial.
> >
> > >>Veja: desobedecer "ordem legal". Se a ordem for ilegal e se esse for
> > >>entendimento do jurídico da empresa não há problema em "desobedecer" e
> >
> > A ordem é perfeitamente legal se a autoridade policial tiver o mandado
> > assinado pelo Juiz no inquérito policial, mas não quiser lhe entregar uma
> > cópia.
> >
> > >>se o Delegado ou quem for decidir por dar voz de prisão por uma suposta
> > >>desobediência (na visão dele) certamente e imediatamente após esse ato
> > >>um juiz terá que analisr a situação.
> >
> > Sim, eu expliquei a cadeia de eventos resumidamente na mensagem anterior.
> >
> > A grande questão é que você sendo culpado ou inocente, inexistirá
> qualquer
> > "sanção" à autoridade policial em uma situação dessas, sendo apenas você
> > que terá o stress emocional e financeiro posteriormente, durante meses.
> >
> > >>Se o custo for mil Reais ou o que for, pessoalmente considero que vale
> > >>muito a pena enfrentar essa situação para garantir que não esteja
> >
> > Eu tenho certeza que você mudaria de ideia se estivesse vivenciando um
> caso
> > concreto nessas circunstâncias, não um caso hipotético.
> >
> > >>atendendo a uma quebra de sigilo sem a devida autorização de um juiz e
> > >>podendo causar diferentes prejuízos futuros para si e para a sociedade.
> >
> > O próprio Estado já possui as ferramentas e os meios pra realizar esse
> > controle. Não há necessidade do particular fazê-lo.
> >
> > >>Acredito que para se contribuir no estabelecimento do que é certo e o
> > >>que aqueles que entendem de forma diferente junto as respectivas
> > >>Assessorias Jurídicas nesse tipo de situação vale muito a pena o custo.
> > >>O que é certo é certo independente do custo que aquilo pode acarretar.
> >
> > Questione à essas assessorias jurídicas sobre a situação hipotética que
> > mencionei no email anterior.
> > Quais seriam os honorários em caso de aceite de uma transação penal e
> quais
> > seriam os honorários em caso de recusa da transação penal.
> > Questione também quais poderiam ser os escopos da transação penal e quais
> > seriam os possíveis resultados em caso de recusa da transação penal.
> > Questione, ainda, o quanto esse caso hipotético contribuiria para o
> > "estabelecimento do que é certo" no mundo jurídico, se viesse a se tornar
> > real.
> > E, por fim, pergunte o percentual de decisões injustas e completamente
> > desarrazoadas com que essas assessorias se deparam diariamente.
> >
> > >>Sobre a questão da demora, se o solicitante tiver essa consciência e
> > >>trouxer a autorização do juiz junto com o pedido tudo fica mais rápido
> e
> > >>não pairam dúvidas.
> >
> > Nem questionei a "demora"... Não é essa a justificativa.
> > Não se trata de "ajudinha"... Se trata da prerrogativa da autoridade
> > policial em requisitar a informação e da obrigação do particular em
> > atendê-la.
> >
> > >>Gestores de empresas que respondem esse tipo de solicitação não
> precisam
> > >>ter cursado faculdade de Direito mas apenas ter acesso a alguma
> > >>Assessoria Jurídica de confiança para saberem como proceder nessas
> > >>situações
> >
> > Sim, a assessoria
> >
> > Mas muitos provedores pequenos não tem essa disponibilidade.
> >
> >
> > >>e tentar colaborar para que a sociedade não seja prejudicada
> > >>pelo cometimento de mais uma ilegalidade. E entre atrasar o
> fornecimento
> > >>das informações solicitadas devido à falta da autorização do juiz e ter
> > >>que lidar com esse stress momentâneo da controvérsia ao invés de
> > >>  simplesmente entregar as informações e acabar por colaborar para o
> > >>  estabelecimento como normal de uma situação danosa à sociedade eu
> > >>  prefiro sem dúvida a primeira situação pois essa só vai causar
> prejuízo
> > >>  à no máximo um ou poucos interessados, já a segunda causa prejuízo à
> > >>  toda a sociedade.
> >
> > Toda essa questão ideológica é legal, até você descobrir como o "sistema"
> > funciona de verdade.
> >
> > Se lembra daquela frase do capitão Nascimento, no Tropa de Elite... "O
> > sistema é f****, parceiro"?
> >
> > Pois é.
> >
> > >>Por fim não ceder à uma ordem aparentemente ilegal com ao respaldo da
> > >>sua Assessoria Jurídica não é ser rude nem grosso.
> > >>À todos que me perguntam eu digo justamente o contrário, para ser
> > >>cortês, solícito e adiantar o que for possível internamente porém pedir
> > >>que no meio tempo o solicitante peça a autorização do juiz.
> >
> > Ser rude ou grosso não é crime. Ninguém responde processo criminal por
> > isso.
> >
> > Mas certamente seria um caminho pra que alguém responda um processo por
> > algum crime/contravenção penal que possa estar cometendo, mas que a
> > autoridade policial tenha feito "vista grossa" até então.
> >
> > >>Não só das assessorias jurídicas, mas de todos os policiais federais
> > >>com quem já lidei em décadas.
> > >>Todos eles já chegavam com ordem judicial debaixo do braço, e diziam
> > >>que a ordem judicial era necessária para aqueles pedidos.
> > >>Confirmado inclusive há poucos dias atrás com um PF que consultei
> > >>depois desta thread.
> >
> > Oi Rubens,
> >
> > Concluindo com a mesma frase que eu iniciei esse email: a autorização do
> > Juiz é necessária à autoridade policial que fará a diligência, devendo
> ser
> > juntada no inquérito. Mas não é necessária a apresentação da autorização
> ao
> > particular. Muito menos é permitido ao particular recusar o atendimento
> da
> > solicitação pela ausência da apresentação do mandado.
>
>
> Não foi o que nenhum desses policiais federais me disse. Essa é a sua
> leitura da legislação, mas não a prevalente entre essas autoridades.
> Todas sem exceção me disseram para me ater ao que estivesse escrito na
> ordem judicial.
>
>
> Rubens
> --
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