[GTER] A neutralidade da rede, fundamento da internet livre

Bruno L F Cabral bruno at openline.com.br
Thu Sep 22 11:09:02 -03 2011


A neutralidade da rede é um dos principais fundamentos da internet livre

Sergio Amadeu da Silveira*

Fui orientador de Rodrigo de Almeida que defendeu, em 2009, a dissertação
de mestrado denominada A Concentração do Poder Comunicacional na Sociedade
em Rede. O seu trabalho rigoroso tornava evidente o inevitável confronto
entre o interesse das Operadoras de Telecomunicações e o dos cidadãos
conectados. O contencioso tinha como epicentro o princípio da neutralidade
da rede.

O que vem a ser a neutralidade da rede? Em poucas palavras, esse princípio
impede que o controlador da infra-estrutura física das redes digitais
possa controlar os fluxos de informação que por elas transitam. Dito de
outro modo, o dono das redes físicas deve ser neutro em relação ao tráfego
de informações. Na prática, a neutralidade impede que as Operadoras da
Telecom possam bloquear pacotes de dados, filtrar o tráfego e definir que
tipo de aplicações podem andar mais ou menos rápido dentro dos seus cabos
e fibras óticas.

Em 2007, o professor da Universidade da Pensilvania, Christopher Yoo, no
debate com Tim Wu, da Universidade de Columbia, sobre se a internet
deveria continuar respeitando a neutralidade. Yoo afirmou que o tratamento
diferenciado de pacotes de informação por tipo de aplicação pode permitir
a superação dos congestionamentos de tráfego na internet. Para isso, as
Operadoras de Telecom deveriam ser autorizadas a identificar os pacotes e
estabelecer privilégio de tráfego aos considerados mais importantes, em
detrimento daqueles com menor grau de relevância
(http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=953989).

Yoo acredita que a neutralidade da rede deve ser substituída pelas regras
de mercado. Na sua concepção, as redes devem ser regidas pela lei de
oferta e demanda por banda larga. Para ele, o melhor exemplo é o da vídeo
conferência. Existem serviços mercantilizáveis que exigem a discriminação
de pacotes, ou seja, para funcionar bem a aplicação necessita de
prioridade de tráfego nas redes.

Há muito tempo as Operadoras querem o fim da neutralidade da rede para
poderem precificar de modo diferenciado tanto a oferta quanto o acesso a
determinadas aplicações, tais como a voz sobre IP, as redes P2P, entre
outras. Quase como sempre na história das disputas econômicas e políticas
no mundo da tecnologia, alguns dos pelejadores utilizam o artifício de
tentar transformar o debate sobre o tema em uma questão técnica.

Segundo Ethevaldo Siqueira, durante a Futurecom 2011, o secretário-geral
da União Internacional de Telecomunicações (UIT), Hamadoun Touré, afirmou
que "as redes mundiais de banda larga poderão entrar em congestionamento
incontrolável e até em colapso, até 2015, se governos, agências
reguladoras, operadoras de telecomunicações, provedores de serviço e
produtores de conteúdo não estabelecerem novos padrões de regulamentação".
Por que? Relata-nos Siqueira que "a cada minuto são postadas 36 horas de
vídeo apenas no YouTube. O que mais preocupa os especialistas é o
crescimento exponencial dos dispositivos de comunicação móvel, cujo total
poderá chegar a 55 bilhões em 2020".

Do ponto de vista técnico, mal começamos a implementar as redes de alta
velocidade e a alargar suas bandas. Além disso, mesmo o espectro
radioelétrico pode ser utilizado de modo completamente distinto do que
acreditamos ser o único modo de seu uso. A realidade é que existe uma
subutilização do espectro na maior parte do tempo. Além disso, as
tecnologias evoluem e permitem a transferência cada vez maior de dados. O
que não é possível aceitar é exagerar o argumento da escessez do espectro
e do congestionamento das redes para impor um outro modo de funcionamento
da Internet.

O especialista em telecomunicações Kevin Werbach tem nos alertado que a
ocupação atual do espectro radioelétrico, apresentada como a única forma
de realizar transmissões por ondas de rádio em um espaço de escassez, não
passa de um mito. No texto “O novo paradigma da comunicação sem fio”
Werbach esclarece:

“Quase tudo que você pensa que sabe sobre o espectro está errado. Durante
quase um século, o espectro de radiofreqüência foi tratado como um recurso
escasso que o governo tem de distribuir por meio de concessões exclusivas.
A concessão do espectro nos trouxe o rádio, a televisão, os telefones
celulares e os serviços vitais de segurança púbica. Durante esse período o
modelo de concessão tornou-se um paradigma incontestável que permeia a
nossa forma de ver. (...) As tecnologias digitais de hoje são capazes de
distinguir entre sinais, permitindo aos usuários compartilhar as ondas sem
necessidade de concessão exclusiva. Em vez de tratar o espectro como um
recurso físico escasso, poderíamos torná-lo disponível para todos como
commons, abordagem conhecida como 'espectro aberto'."

Em sentido completamente oposto ao catastrofismo apresentado pelo
representante das Telecomunicações, Hamadoun Touré, em 2008, a FCC,
Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos liberou as faixas de
frequência, denominadas "espacos em branco" (white spaces) que existem
entre os canais de TV. Na época, o presidente da FCC, Kevin J. Martin,
escreveu na declaração oficial da aprovação que "a autorização do uso dos
'espaços em brancos' do espectro é uma vitória significativa para os
consumidores".

Rádios operados por software podem operar na faixa de 900 MHz a 3Ghz, já
que a maioria deste espectro é subutilizado nos Estados Unidos. Por isso,
Martin declarou que espera ver "reforçada as redes de banda larga abertas,
os dispositivos P2P inteligentes e até mesmo que pequenas redes de
comunicação venham a ser formadas nos "espaços em branco" entre os canais
de TV".

Como é possível perceber, a ideia de colapso eminente das redes que
justifique a transformação da Internet em uma grande rede de TV a cabo
está longe de ser tecnicamente plausível. As Operadoras de Telecom querem
o fim da neutralidade da rede porque querem ampliar sua lucratividade.
Segmentos da indústria da intermediação, principalmente as corporações do
copyright, também têm interesse no aumento de controle das empresas de
telecom sobre a rede. Acreditam que isso facilitaria o bloqueio do
compartilhamento de arquivos digitais. Grupos retrógrados da burocracia
estatal e membros dos aparatos de segurança também se interessam em
assegurar às Teles um maior poder de filtrar e interferir no tráfego.

O fato é que se as Teles puderem quebrar ou flexibilizar a neutralidade de
rede a primeira vítima será a inovação que tem caracterizado a história da
Internet.

Ao permitir que as empresas de telecom possam filtrar o tráfego, priorizar
aplicações ou fazer acordos comerciais que privilegiem o fluxo de
informações de quem realizou contratos específicos com as mesmas,
estaremos abrindo espaço para transformar a Internet em uma grande rede de
TV a cabo. Além disso, estaremos definitivamente substituindo a cultura de
liberdade que imperou até hoje na rede pela cultura da permissão. Todo
novo protocolo ou aplicação poderá ser bloqueado pelas Operadoras de
Telecom com o argumento de que não faz parte de sua política de tráfego.
Será impossível inventar um protocolo sem ter as Teles como sócias ou, no
mínimo, sem a sua autorização.

Por isso, temos que definir claramente o que é neutralidade no Marco Civil
da internet no Brasil. Precisamos retirar da proposta que o governo enviou
ao Parlamento qualquer possibilidade de a Anatel regulamentar o que venha
ser a neutralidade da rede. O poder econômico e econômico das teles
precisa ser controlado sob pena de mudarmos completamente a dinâmica da
Internet, de reduzirmos as possibilidades de livre criação e invenção, bem
como, de submetermos a diversidade cultural aos seus interesses
comerciais.

*Sergio Amadeu da Silveira é professor do Centro de Engenharia, Modelagem
e Ciências Sociais Aplicadas da UFABC. É membro do Comitê Gestor da
Internet no Brasil.

Fonte:
http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-neutralidade-da-rede-por-sergio-amadeu-da-silveira



More information about the gter mailing list